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‘Minha família pode comer por quatro dias’

Após as duas piores crises econômicas da história do país, milhões de brasileiros não sabem como vão alimentar suas famílias

Foto: Tiago Rodrigues

O Brasil atravessa uma epidemia mais antiga e perigosa do que a do coronavírus: a fome. Menos de dez anos depois de o país ter saído do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU), o aumento da desigualdade e a pandemia fizeram o índice voltar a subir rapidamente. Hoje, 36 em cada 100 brasileiros não têm dinheiro suficiente para comer ou alimentar sua família todos os dias.

O médico e historiador Josué de Castro, o mais importante teórico sobre a fome no país, defendia que o problema é endêmico. Diferentemente de outros países, aqui a fome não está ligada a situações de guerra ou crise. Ela simplesmente acontece, fruto da concentração de riqueza em poucas mãos e da inação do Estado. É um mal crônico.

Em 1968, no início do chamado “milagre econômico”, quando a economia brasileira cresceu de forma acelerada (e artificial), a fome era tão generalizada que a revista Realidade publicou um experimento. Os repórteres da publicação saíram de carro aleatoriamente em uma estrada rural da Zona da Mata, em Pernambuco, e abordaram a primeira pessoa que apareceu.

Era José Juvenal da Silva, que na época tinha 61 anos e trabalhava conduzindo carroças. Os jornalistas perguntaram se poderiam levar Juvenal a um consultório médico para fazer testes. Ele topou, mas avisou que tinha uma saúde de ferro e nunca ficava doente.

Os exames, porém, mostraram que ele estava severamente desnutrido. Tinha 1,57 cm de altura e pesava 36 quilos – 61% abaixo do que deveria ser o seu peso normal. Juvenal passava fome, e isso havia lhe causado anemia e problemas de fígado. Ele também tinha esquistossomose e infecções provocadas por microorganismos.

O homem deveria ser internado imediatamente, mas não havia espaço para ele. O médico entregou uma amostra grátis de remédio a ele, que agradeceu e foi embora. Juvenal morreria no final daquele ano.

Histórias como essa são tão comuns que quase sempre passam despercebidas, sem virar notícia. Hoje, mais de 50 anos depois da reportagem, o Brasil continua na triste situação de ver pessoas morrerem por complicações associadas à fome. E nem é preciso ir longe para encontrar casos semelhantes.

No começo do ano, o país se revoltou com a morte de Moïse Kabagambe, um refugiado que foi assassinado em um quiosque de praia no Rio de Janeiro. O jornalista Caio Barretto Briso, que conheceu Moïse, relatou no Twitter a realidade de um dos colegas do congolês: um homem chamado Luta Espoir Babou, que veio ao Brasil com o sonho de jogar futebol, mas acabou no subemprego. 

Luta teve um filho nascido no Brasil, a quem batizou de Vencedor. Vencedor morreu ainda bebê, vítima de desnutrição. A família só tinha dinheiro para comprar fubá, que tem um valor nutricional irrisório.

Nos anos 1960, a taxa de mortalidade de crianças com até cinco anos de idade era de 164 por mil nascidos vivos no Nordeste, a região mais pobre do país e, consequentemente, a mais afetadas pela fome.

Como contou a revista Realidade à época, o bebê sobrevive no primeiro ano de vida porque é amamentado pela mãe e faz pouco esforço. No segundo ano, ele passa a receber o tratamento normal: farinha de mandioca e água. “Então em breve morre de inanição, de complicações de fígado ou de intestino”, diz a reportagem.

A falta de nutrientes prejudica o desenvolvimento de crianças. Em 2020, 4 mil morreram por desnutrição. Foto: Tiago Rodrigues
A falta de nutrientes prejudica o desenvolvimento de crianças. Em 2020, 4 mil morreram por desnutrição. Foto: Tiago Rodrigues [Photo: Tiago Rodrigues]

Desde então, o problema parecia estar melhorando e muitos chegaram a anunciar que a mortalidade infantil era coisa do passado. Mas, após a recente crise econômica de 2014-2016, a taxa parou de cair pela primeira vez em décadas.

De cada três crianças brasileiras, uma apresenta um quadro de anemia ferropriva, causada pela falta de ferro no organismo, revelou um estudo da Universidade Federal de Santa Catarina publicado em julho do ano passado.

Além disso, a desnutrição crônica afeta cerca de 4% das crianças e, em 2020, essa foi a causa de morte de 4 mil crianças com até nove anos, segundo o DataSUS. Os casos ocorrem principalmente nos estados do Norte e Nordeste. 

Assim como na casa de Luta, o fubá, uma farinha de milho, é a principal fonte de alimentação para a família de Ivânia Sousa, uma catadora de recicláveis que morou por um ano a um quilômetro de distância do Palácio do Planalto, a sede do poder político brasileiro. Ela, o marido e os três filhos já ficaram várias vezes sem ter o que comer, mesmo estando tão próximos ao centro mais rico do país.

Meio quilo de fubá sai por cerca de 3 reais, e há um ponto importante: para ser consumido, ele deve ficar de molho no vapor, que faz a farinha inchar. Isso faz o preparo encher a barriga, o que dá uma falsa sensação de saciedade. A família de Ivânia come fubá todos os dias. Na falta de ração, o cachorro Cleitinho também come fubá.

Durante a pandemia, ela, o marido, três filhos e outras 30 famílias construíram seus barracos de pau e lona num terreno público que estava sem uso há 40 anos, chamado justamente de Vila Palácio Presidencial. O local fica exatamente nos seis quilômetros que separam o Planalto e o Palácio da Alvorada, a residência oficial do presidente.

No ano passado, o mundo se chocou com o retrato atroz da desigualdade brasileira traduzido em cenas, reveladas pelo jornal Extra, de famílias que recorrem a restos de ossos e carne rejeitados por supermercados. “A gente limpa e separa o resto de carne. Com o osso, fazemos sopa, colocamos no arroz, no feijão… Depois de fritar, guardamos a gordura e usamos para fazer a comida,” uma mulher explicou ao jornal.

O consumo de proteína no Brasil está diminuindo até entre famílias de classe média. No Brasil, o consumo de carne bovina é quase um termômetro da situação econômica do país. Nos últimos anos, milhões de famílias substituíram a carne pelo frango, e depois o frango pelo ovo. O preço de um quilo de carne aumentou em três vezes na última década.

Para tentar chamar a atenção do presidente e outros oficiais que passavam de carro em frente à sua casa, ela e os vizinhos mandaram fazer faixas, que colocaram do lado de fora dos barracos, e fizeram protestos. “Ele nunca parou o carro. Acho que nunca nem olhou para o nosso lado”, disse.

As famílias foram desalojadas do local em abril do ano passado, em um dos momentos mais críticos da pandemia. Cada uma foi levada a um canto, e a vista do presidente ficou desobstruída de novo.

Hoje, as cinco pessoas da família de Ivânia moram em um cubículo em Itapoã, distante cerca de 20 minutos de carro do Plano Piloto de Brasília. A casa é geminada com outras de baixa renda, quase sem privacidade. Não tem janelas, o teto é baixo e faz muito calor dentro. A cozinha é tão escura que a luz precisa ficar acesa o tempo todo. Dois filhos de Ivânia dormem em um colchão velho ao lado da geladeira.

Ela recebe doações de pessoas que se comoveram com a história da ocupação, e é isso o que enche a panela no dia a dia. Mas, como depende da boa vontade dos outros, Ivânia nunca sabe quando irá receber provisões, o que vai chegar e nem se será suficiente para a sua família continuar existindo.

O grau de insegurança de Ivânia e sua família é o mesmo de mais de um terço dos brasileiros. A taxa de pessoas que não têm dinheiro para comer em todas as refeições escalonou em poucos anos. Em 2014, 17% passavam pelo problema. Cinco anos depois, eram 30%. E, em 2021, alcançou 36% – acima da média mundial, de 35%. Os dados são da pesquisa “Insegurança Alimentar no Brasil”, da Fundação Getúlio Vargas, divulgada em maio.

O quadro é ainda mais cruel entre os mais pobres, em que assustadores 75% dos lares sofrem com algum grau insegurança alimentar.

O total de brasileiros que passa por insegurança alimentar grave – ou seja, fome no sentido mais duro da palavra – dobrou durante a pandemia. Eram 10 milhões em 2019. E passou para 19 milhões em 2021, como mostra o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan).

Ou seja, nove em cada 100 brasileiros convivem diariamente com a falta de comida necessária para a sobrevivência. 

Um batalhão de 116 milhões de pessoas, como Ivânia, podem ficar longos períodos sem ingerir alimentos e, se comem, têm acesso a comida pobre em termos nutricionais, pouco variada e em quantidade escassa.

Ivânia teve que deixar o trabalho como catadora de recicláveis por problemas de saúde. Ela é obesa, tem complicações na coluna, sofre com depressão e ansiedade e recentemente descobriu tumores nos seios. No dia seguinte à nossa conversa, ela tinha um exame pelo sistema público de saúde. Cada exame demora semanas para ser marcado. O quadro pode se agravar rapidamente, e isso a enche de angústia.

Estudos recentes mostram que doenças mentais e suicídio afetam até três vezes mais pessoas de baixa renda do que as mais ricas. É um ciclo que se retroalimenta: a pobreza gera depressão e ansiedade, e depressão e ansiedade impactam no trabalho e nas condições de vida, aumentando a chance de a pessoa permanecer na pobreza. Em países com programas bem-sucedidos de combate à miséria, os índices de transtornos mentais geralmente são mais baixos.

Além disso, a falta de nutrientes essenciais de forma prolongada na alimentação diária pode causar danos à saúde no médio e longo prazo. Ivânia sabe disso, e se emociona ao falar sobre a dificuldade de conseguir prover refeições variadas aos filhos, que ainda estão em fase de crescimento. Com os olhos cheios de lágrimas, ela disse que se considera uma mãe ruim.

Uma alimentação pobre em nutrientes pode acarretar em falhas de desenvolvimento físico e cognitivo, anemia, má formação óssea e disfunções mentais, de acordo com o Ministério da Saúde. Um prato brasileiro comum, com arroz, feijão, salada e carne seria o suficiente para suprir quase todas as necessidades de uma pessoa por um dia. Mas o preço dele está além do orçamento de famílias como a de Ivânia.

“Um quilo de tomate custa 7 reais. Então eu não vou comprar salada, vou priorizar um quilo de feijão, que minha família pode comer por quatro dias”, diz. Segundo ela, os filhos só comem frutas ou verduras quando elas vêm em doações. “Mas é duro para uma mãe admitir isso. Eu acho que desenvolvi ansiedade por causa disso, me sinto culpada.”

Poucos dias antes de nosso encontro, ela havia recebido uma doação de 250 reais. O dinheiro deu para comprar três pacotes de bolacha, sabão em pó, cloro, dois quilos de feijão, 10 quilos de arroz, um frango, um quilo de café, papel higiênico, cinco quilos de açúcar, dois óleos de soja e seis pacotes de fubá. Os mantimentos duraram uma semana em sua casa.

Uma compra de 250 reais alimenta a família de Ivânia Sousa por uma semana. Ela recebe 400 reais por mês. Foto: Tiago Rodrigues
Uma compra de 250 reais alimenta a família de Ivânia Sousa por uma semana. Ela recebe 400 reais por mês. Foto: Tiago Rodrigues [Photo: Tiago Rodrigues]

A alimentação é hipercalórica, baseada em produtos industrializados, ricos em sódio, açúcares e gordura saturada. “Eu sei que pode vir obesidade [para os filhos], como eu tenho”, afirma Ivânia. 

Essa é a nova realidade da fome no país. Ao invés de corpos esqueléticos, ela pode estar associada a pessoas obesas, mas igualmente desnutridas.

A sua única fonte de renda de Ivânia hoje é o Auxílio Brasil, que fornece 400 reais mensais a famílias em situação de vulnerabilidade.

O governo do Distrito Federal deveria pagar pelo seu aluguel, mas atrasa a conta desde setembro. Apenas com a mesada do Auxílio Brasil, ela não consegue pagar a habitação (600 reais por mês) e nem bancar itens essenciais para a sobrevivência, como comida, remédios e produtos de higiene. Ivânia precisa pegar dinheiro emprestado todo mês para ter o mínimo para garantir a sobrevivência da família.

Como ela, 71% das famílias brasileiras fecharam o ano de 2021 com dívidas. É o recorde da série histórica medida pela Confederação Nacional do Comércio (CNC), que teve início há 11 anos. O estudo apontou que as famílias mais pobres tiveram que se endividar para poder pagar por itens básicos que ficaram mais caros, como alimentação, medicamentos e habitação.

No ano passado, o preço dos alimentos aumentou em média 28%, de acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Foi o maior índice em uma década, causado principalmente pelos impactos da pandemia. Além disso, a inflação geral no Brasil fechou 2021 em 10,06%, a mais alta dos últimos seis anos. O preço de uma cesta básica no Distrito Federal alcançou 631,95 reais – o suficiente para comprometer mais da metade de um salário mínimo de 1,2 mil reais.

[Photo: André Chiavassa]

Foi também durante a pandemia que a desigualdade alcançou o seu pior índice em duas décadas. Em 2020, quase a metade de toda a riqueza produzida no país foi para as mãos do 1% mais rico, de acordo com relatório do banco Credit Suisse divulgado no ano passado. O resultado é o pior da América Latina. No Chile, por exemplo, 31% da riqueza é concentrada no 1% mais rico. Nos Estados Unidos, a fatia é de 35%. No Japão, 18%.

O fechamento das escolas em virtude de medidas de isolamento causará seríssimas consequências para milhões de crianças e adolescentes que tiveram o acesso ao ensino comprometido por pelo menos dois anos letivos. Mas, em um país como o Brasil, a escola não é apenas um local para o aprendizado — em muitos casos, ela é uma das poucas fontes provedoras de alimento. A merenda escolar ainda é o principal meio de nutrição para milhares de crianças que não a conseguem obter em casa. 

A suspensão das aulas também afetou em cheio famílias que dependem da agricultura familiar para o sustento. Sem aulas, municípios cortaram contratos de compra da produção de pequenos agricultores, que costumam ser priorizados principalmente em cidades do interior, o que aumentou a privação de renda de famílias da zona rural.

O agricultor Lidenilson Silva, que mora na pequena cidade de Igarapé-Açu, no Pará, vive a realidade na pele. Ele faz parte de uma cooperativa de pequenos agricultores que produziam alimentos orgânicos para feiras, cestas básicas de projetos sociais e merenda escolar. Agora, mesmo com acesso aos alimentos, muitos passam fome.

“A condição de vida piorou de forma substancial. O preço dos insumos subiu muito, principalmente para quem trabalha de forma mais artesanal. Há dois anos, o adubo químico custava 160 reais. Hoje, passa de 400”, diz. Ainda há a perspectiva de o preço continuar subindo nos próximos meses por causa da guerra entre Rússia e Ucrânia.

Lidenilson começou a perceber que o estilo de vida entre seus vizinhos está parecido com o dos anos 1980, quando muitos deixaram o campo para procurar trabalho nas capitais, e acabaram em favelas. “Há uma pressão dos grandes pecuaristas e produtores de soja, que pagam barato pelas terras e os agricultores, sem dinheiro, não têm a opção de não aceitar.”

“Nós vemos um investimento forte no agronegócio e nada para a agricultura familiar, que produz 70% dos alimentos do país. Hoje em dia, com a patente e melhoramento de sementes, você precisa comprar a semente, adubos e pesticidas específicos, e isso é muito caro”, conta.

Assim é criado o paradoxo do campo: ao mesmo tempo em que o Ministério da Agricultura celebra anualmente produções recordes de grãos, é justamente no meio rural que residem 75% das famílias em insegurança alimentar. Isso quer dizer que três em cada quatro lares do campo enfrentam algum tipo de privação de alimentos.

O quadro foi causado pela desarticulação dos programas públicos de compra de produtos da agricultura familiar, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), que nos últimos anos sofreram cortes de até 90%.

A prioridade para a compra de alimentos de pequenos produtores, mais saudáveis e diversos, foi um dos motivos que levaram o programa de merenda escolar brasileira a ser considerado modelo pela FAO, que levou o exemplo a outros países em situação de desenvolvimento. 

“Mesmo com as denúncias de corrupção e superfaturamento no orçamento da merenda, entendemos que a alimentação provida na escola é essencial para garantir condições mínimas de as crianças continuarem estudando e tenham níveis nutricionais providos”, afirma Daniel Balaban, diretor do Centro de Excelência contra Fome do Programa Mundial de Alimentos da ONU. 

Balaban destaca que o país tem programas que poderiam ser mais eficazes no combate à fome, mas que foram relegados a um segundo plano nos últimos anos. Segundo ele, não é suficiente distribuir alimentos: é preciso criar mecanismos para efetivamente diminuir a concentração de renda no país.

O Bolsa Família, criado em 2003 e que conseguiu retirar milhões de famílias da miséria, foi esvaziado no fim do ano passado. O programa atrelava o pagamento de um auxílio mensal ao compromisso de que as famílias mantivessem os filhos na escola e com esquema vacinal em dia – requisitos não são mais obrigatórios.

“A luta contra a fome é um esforço contínuo. Se um país como a Noruega, por exemplo, interromper as políticas sociais, nós vamos ver pessoas morando na rua e passando fome em poucos anos. No Brasil existe uma mentalidade de que a ação do Estado deixa o povo preguiçoso, sem querer trabalhar e se escorando em benefícios sociais, mas isso é uma mentira. Se encontram um outro caso é exceção, e não regra”, diz Balaban.

O nível mais baixo de pessoas com fome, 4,2%, foi alcançado em 2013. Foi nessa época que a FAO excluiu o Brasil do Mapa da Fome. 

Foi por volta desta época, também, que a família de Ivânia migrou da Bahia ao Distrito Federal, acreditando que, por estarem perto do centro político do país, em um bolsão de riqueza, teriam mais oportunidades para trabalhar e obter renda. O país estava crescendo e havia uma perspectiva de que as coisas poderiam melhorar.

No entanto, o sonho não se tornou realidade.

Ivânia tem três filhos, mas também cuida das filhas das vizinhas, que passam o dia fora trabalhando. E isso envolve alimentá-las também. Foto: Tiago Rodrigues
Ivânia tem três filhos, mas também cuida das filhas das vizinhas, que passam o dia fora trabalhando. E isso envolve alimentá-las também. Foto: Tiago Rodrigues [Photo: Tiago Rodrigues]

Logo vieram as duas piores recessões econômicas já registradas, e o país adotou políticas de austeridade que barraram o aumento de gastos públicos em políticas sociais e despesas como saúde e educação.

A pobreza aumentou ano a ano, e há hoje pelo menos 40 milhões de famílias abaixo da linha da pobreza – ou seja, têm renda per capita de menos de 89 reais por mês.

O Mapa da Fome não existe mais como era feito até 2014, pois os critérios para sua elaboração foram alterados. Mas, se considerarmos os limites antigos, que destacavam os locais com mais de 5% da população com fome, o Brasil estaria de volta a ele. Menos de 10 anos depois de ter saído, o índice de pessoas com fome mais do que dobrou.

“Não vamos avançar enquanto o Estado se negar a distribuir riquezas e enquanto as pessoas não tiverem as condições mínimas para exigir o cumprimento de seus direitos. Uma pessoa que tem fome simplesmente não vai se interessar por política, não vai entender que esse é o único mecanismo possível para ter dignidade. Ela está preocupada em comer, e isso já é demais”, afirma Daniel Balaban.

Vilma Reis mora a 200 metros de uma estação de tratamento de água, mas teve que reformar a casa para evitar enchente de água contaminada. Foto: Tiago Rodrigues
Vilma Reis mora a 200 metros de uma estação de tratamento de água, mas teve que reformar a casa para evitar enchente de água contaminada. Foto: Tiago Rodrigues [Photo: Tiago Rodrigues]

Vilma Reis sabe disso. Moradora de uma das áreas mais pobres do Distrito Federal, o Santa Maria, ela mora em uma rua que fica alagada toda vez que chove. Nas redondezas há lixões e estações de reciclagem, e parte dos dejetos é carregada pelas águas. No dia em que fomos visitar Vilma, vi crianças brincando descalças próximas da água malcheirosa. Um prato cheio para a disseminação de doenças.  

Curiosamente, o local fica a menos de 200 metros de uma estação de tratamento de água que abastece parte do Distrito Federal.

Para proteger suas coisas das constantes inundações, Vilma construiu uma barreira de cimento em frente de casa. Os moradores e visitantes precisam pular o pequeno muro, de cerca de um metro de altura, para entrar. Ela trabalhava como catadora, e agora é voluntária em um projeto que ensina desenvolvimento sustentável a moradores de favelas. 

“Eu gostaria de melhorar a minha rua, mas quero que melhorem todas as ruas. O que adianta eu viver num lugar bom, ter comida, se os meus colegas não têm?”, pergunta. “Por isso acho importante esse trabalho bem de formiguinha, para que todo mundo tenha um pouco de consciência e passe adiante.”

Ela mostrou ao The Brazilian Report a meia dúzia de livros de literatura que recebeu de doação e mantém em posição de destaque no cômodo que serve de quarto, sala e cozinha. Está lendo “Extraordinário”, de R.J. Palacio, que fala sobre um menino com malformação no rosto que sofre com o desprezo das pessoas ao seu redor. 

“Eu me identifico. Sinto que não me veem, e quando me veem, eu incomodo”, disse.

A fome é uma das personagens principais. Ela aparece já nas primeiras linhas do livro: “Na planície avermelhada, os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos.”

Ondas sucessivas de seca motivaram o êxodo de trabalhadores para outras regiões do país durante o século passado, e, a quem ficou, longos períodos de miséria e fome. Apesar de hoje a situação estar mais controlada — porque a economia não depende mais apenas da agricultura —, o Nordeste ainda é a região mais atingida pela fome.

Segundo o relatório da Rede Penssan, o maior número de pessoas em situação de insegurança alimentar ainda se concentra na região: eram 7,7 milhões em 2020. Atualmente, 47,9% de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza estão no Nordeste, de acordo com o IBGE.

A seca é um dos principais fatores do lento crescimento econômico da região. Durante a colonização, alguns locais se destacaram pelas boas condições para cultivo de cana-de-açúcar e pecuária, como em Salvador, hoje capital da Bahia. Mas, quanto mais adentravam em direção ao interior, os colonizadores logo perceberam que os longos períodos sem chuvas na região da caatinga seriam um empecilho para a agricultura.

E, quando a família real portuguesa se mudou para o Rio de Janeiro, em 1808, o dinheiro migrou para o Sudeste junto com eles. Ainda hoje a região detém a maioria da riqueza financeira do país.

Maceió, em Alagoas, por exemplo, é um caso típico de desigualdade à moda brasileira. Conhecida como “Caribe brasileiro” pelo mar de águas quentes num tom azul-turquesa, a cidade tem grandes edifícios, hotéis e restaurantes de luxo à disposição dos que podem pagar.

Mas é só caminhar alguns poucos quilômetros morro acima que o cenário muda drasticamente. Maceió é a oitava capital com a maior quantidade de favelas no Brasil, segundo o IBGE. De fato, 17,3% da capital alagoana é formada por áreas urbanas categorizadas como “aglomerados subnormais”. Alguns bairros, como o Vergel do Lago e do Vale do Reginaldo, são controlados pelas facções criminosas PCC e Comando Vermelho.

Karine Lais Caldas Belo, 35, é cantora e moradora há 12 anos da Vila Emater, e conta que já viu a fome na região se expressar de diferentes formas. O bairro nasceu de um aglomerado de barracos no entorno do antigo lixão de Maceió. Neles viviam famílias que sobreviviam como catadores, e se alimentando de comida jogada no lixo.

“Assim que eu vim morar aqui eu via mesmo a fome,” conta Karine. “Aqueles que moravam ao redor do lixo, eles desciam aqui, porque eu moro na rua de baixo, para vir pedir. Era explícita a vontade de querer comer.”

Com o passar dos anos, tanto a comunidade quanto o lixão se expandiram. Em 2010, o governo municipal transferiu o centro de coleta para um local mais distante. A privilegiada vista do mar de cima do morro atraiu investidores para a área, que, em poucos anos, construíram casarões e um dos principais shoppings da cidade.

Os moradores mais antigos da Vila Emater, no entanto, entraram num profundo estado de crise. Com a saída do lixão, eles passaram a não ter nem mesmo restos vencidos para comer.

Foi nesta época que Karine decidiu criar um projeto social para ajudar seus vizinhos. O Coral Santa Cecilia ajuda 100 crianças com atividades educativas, doações de materiais escolares e, principalmente, alimentos.

“Sempre tive preocupação com comida (…) E não é uma preocupação com um biscoito ou uma pipoca, mas sim um alimento que sustente. Porque as crianças vêm para cá como um refúgio de casa, para ter momentos de alegria, e isso também é um momento de querer comer, de ter o prazer de encher a barriga,” explica.

Karine sabe que muitas crianças só estão inscritas no projeto por causa do lanche que acontece toda quarta-feira depois do coral. No cardápio, que muda toda semana, há cachorro-quente, sopa, bolo e frutas.

“Nem todos os dias eles têm [comida em casa]. Quando vão para o coral, o foco deles é mais o lanche. Em casa, é mais o básico, feijão, arroz…”, conta Maria de Fátima da Silva, mãe de duas crianças inscritas no Coral Santa Cecília.

Os lanches são doados por doadores ou pequenas empresas. Mas nem sempre é fácil encontrar pessoas dispostas a pagar pela comida, e isso se torna uma fonte de estresse semanal para os voluntários do projeto.

Além da negligência do governo, também faltam redes de apoio em comunidades carentes de Maceió. Boa parte do trabalho social é feito por projetos de voluntários como o da Karine. Mas, com a pandemia, muitas ações foram paralisadas.

“Ainda tem muitos voluntários que estão com medo de ir para uma ação social, por medo de pegar ou passar o vírus. Antes, a gente cobrava que o voluntário fosse à ação, que ele fosse um voluntário participativo. Hoje a gente já não cobra mais,” explica Pedro Henrique Da Silva Santos, 31, jornalista e ativista social.

Santos é um dos coordenadores do Seja Luz, um projeto que conta com mais de 100 voluntários e opera nas principais favelas da cidade. Ele diz que, antes da pandemia, voluntários faziam ações em creches, asilos e hospitais, mas hoje só conseguem ajudar moradores de rua. O número de doações também caiu, apesar de elas serem mais necessárias que nunca.

“Muita gente perdeu o emprego, foi demitida, tinha sua empresa e faliu”, conta. “Muita gente que não passava fome agora está passando.”

E não era pouca couve: Dona Matilde era a encarregada de preparar uma quantidade suficiente para rechear as mais de 350 marmitas que seriam distribuídas dali a quatro horas. “Não dá para perder tempo, a gente não quer atrasar o pessoal da cozinha. E o povo às vezes leva um pouco mais”, comentou. 

Correr contra o tempo é praticamente um lema para os voluntários do ‘Projeto Mistura’, iniciativa criada em 2021 pelo chef Matheus Oliveira. Diante de uma fome que cresce e não espera, ele largou os restaurantes de São Paulo para enfrentar a situação de insegurança alimentar em bairros pobres e periféricos de Mogi das Cruzes — cidade com pouco menos de 500 mil habitantes a uma hora e meia da capital paulista.

Enquanto reunia os esforços braçais e financeiros para levar o projeto adiante, Matheus conheceu Dona Inês, representante da Paróquia de São Pedro. Juntos, criaram o Projeto Mistura.

Para Dona Inês, o projeto tem caráter “emergencial”, não caridoso. Acostumada a receber pedidos de pessoas em situação vulnerável, ela contou ao The Brazilian Report que a pandemia criou um cenário novo — até mesmo para quem trabalha na área. Em vez de pequenas quantias financeiras para ajudar com uma conta de água ou para fazer um reparo na casa, o público carente vai até ela para pedir comida. 

“É uma epidemia de fome”, ela diz.

O local escolhido para fazer e distribuir as marmitas naquele domingo não tinha número. Era uma casa semi-construída, com blocos de cimento aparente, cercada por um campo de terra que se alternava entre poças de água parada e grandes tufos de grama.

Volunteers of Projeto Mistura
Volunteers of Projeto Mistura [Photo: Pedro Chavedar]

As canelas expostas não tinham qualquer chance contra os mosquitos, que só começaram a sumir quando o vapor quente da imensa panela de arroz transformou a cozinha — que tinha pouquíssima ventilação — em uma sauna de cebola e alho refogados.

Matheus, que determinava as funções e cuidava de tudo que fervia no fogão industrial, misturava o feijão, a linguiça e os temperos com certa pressa, sem vacilar. “A questão não só alimentar as pessoas. Precisamos dar dignidade e oferecer uma comida boa e nutritiva. Comer é um ato de resistência,” explicou o chef.

“Sabemos que muitas dessas pessoas dependem do que a gente faz. Por sorte, as doações funcionam para bancar as entregas, mas seguimos em busca de novas parcerias. A pandemia vai deixar um rastro de fome e nossa ideia é criar um refeitório, uma cozinha popular, oficinas de gastronomia popular. Ocupamos um espaço que o estado não ocupa”, contou o chef ao The Brazilian Report em uma de suas pausas.

A criação de medidas emergenciais durante a pandemia não é uma necessidade só do Brasil. No último dia 27 de janeiro, o Programa Mundial de Alimentos (PMA) e a FAO divulgaram um relatório de nome “Focos da Fome”, jogando luz sobre países em desenvolvimento que estão à margem de uma crise de fome geral.

Entre os citados estão Colômbia, Haiti e Honduras, onde as crises política, climática e econômica se juntam para compor um quadro que prevê um aumento vertiginoso de pessoas famintas em 2022. Ainda que estas três nações estejam particularmente ameaçadas, entidades internacionais admitem que trata-se de uma crise sistêmica em todo continente, que ainda se recupera de dois anos de baixa econômica por conta da crise sanitária.

A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) havia divulgado um novo relatório sobre a situação socioeconômica no continente, apontando que 5 milhões de latino-americanos cruzaram a linha da pobreza extrema em 2021; com isso, já são mais de 86 milhões de pessoas nessas condições.

A marmita, pouco antes de ser entregue aos beneficiários do projeto.
A marmita, pouco antes de ser entregue aos beneficiários do projeto. [Photo: Pedro Chavedar]

Um dos maiores movimentos para distribuir alimentos durante a pandemia foi protagonizada pela Central Única de Favelas (Cufa), a ONG Gerando Falcões e a Frente Nacional Antirracista, que doaram mais de 2 milhões de marmitas. A comida era direcionada apenas a mulheres negras chefes de família, principalmente de cidades do interior.

“Se você dá comida a uma mãe, estará dando comida a mais gente”, disse Tamires Sampaio, da Frente Nacional Antirracista. Um estudo de 2019 mostra que 57% das famílias lideradas por mães solteiras no Brasil vivem abaixo da linha de pobreza.

Elza Soares, a cantora escolhida como a ‘voz do milênio’ pela BBC e morta em janeiro, já esteve em uma situação parecida. Negra e pobre, ela começou a cantar para tentar salvar a vida de um dos filhos, que estava morrendo de desnutrição. Os seus dois primeiros meninos haviam morrido de fome, antes mesmo de serem registrados.

Segundo muitos moradores do bairro, a refeição oferecida pelo Projeto Mistura é a mais completa da semana inteira.
Segundo muitos moradores do bairro, a refeição oferecida pelo Projeto Mistura é a mais completa da semana inteira. [Photo: Pedro Chavedar]

Ela tinha 23 anos quando soube de um festival de calouros que tinha um prêmio acumulado em dinheiro. “Eu já tinha perdido dois filhos e não queria perder mais um”, disse ela em uma entrevista recente. “Não sei como, mas eu sabia que ia buscar esse prêmio.”

Elza pesava 32 quilos na época. Ela pegou um vestido da mãe, que tinha 60 quilos, e o ajustou ao corpo com alfinetes. A plateia do programa deu risada quando viu a sua figura.

Ary Barroso, o apresentador do programa, perguntou de qual planeta ela tinha vindo. “Do planeta fome”, Elza respondeu. As risadas cessaram. Ela ganhou o prêmio e seu filho permaneceu vivo.

A cantora morreu em janeiro, aos 91 anos. Seu último disco, “Planeta Fome”, fala sobre a luta de mulheres que, como ela, viram os filhos padecerem de fome, mas, ao contrário dela, não puderam fazer nada. “Vim do planeta fome e continuo no planeta fome. É um país desigual, é uma coisa horrível, a gente vive nisso”, disse, na época.

No Brasil, a tragédia do passado e a tragédia do presente são uma coisa só.