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Como editoras burlam leis para abocanhar mais dinheiro público da educação

Fornecedores de livros didáticos a escolas públicas, grandes editoras coagem professores a escolherem seus materiais de modo a ganhar ganhar mais contratos com o governo, revela The Brazilian Report

Illustration: Shutterstock

O Brasil tem um dos maiores programas de distribuição de livros didáticos do mundo, atrás apenas da China. Por oito décadas, o governo federal compra e envia livros para mais de 140 mil instituições escolares e 35 milhões de estudantes. Apenas em 2023, foram gastos mais de BRL 1,5 bilhão com o programa.

Pelo seu tamanho, é fácil de imaginar como o programa é atraente para editoras que produzem os materiais. O problema é que algumas delas encontraram maneiras de burlar a lei e faturar ainda mais verba pública.

Antes de explicar o esquema, é importante entender como funciona o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD).

Livros de cada série escolar – do ensino infantil ao ensino médio – são substuídos em um ciclo que dura quatro anos. O Ministério da Educação publica editais especificando as características dos livros que ele pretende comprar.

As editoras fazem os livros cumprindo as especificações e os inscrevem nos editais. Uma comissão técnica avalia quais deles estão aptos a serem usados em sala de aula. Os professores das escolas recebem um “cardápio” com todas as obras aprovadas e têm liberdade para escolher aquelas que querem usar durante o ano letivo.

É só então que o governo negocia com as editoras quais publicações serão compradas e em qual quantidade. Quanto mais professores escolhem determinada coleção de livros, mais a editora que a fabrica recebe.

Para ter sucesso entre os professores, muitas empresas optam por um marketing de guerrilha, oferecendo brindes, presentes e jantares para o corpo docente, investindo no relacionamento corpo a corpo, e até roubando livros de editoras concorrentes, segundo vários relatos obtidos por The Brazilian Report.

A resolução que institui o PNLD proíbe a empresas com materiais inscritos no programa “oferecer vantagens de qualquer espécie a pessoas ou instituições vinculadas ao PNLD, a qualquer tempo”. 

Também proíbe presentes e brindes, oferecer eventos, divulgar materiais nas escolas e qualquer outra coisa que indique favorecimento ou pressão para que a escola adote os seus materiais durante o período de registro da escolha dos livros no PNLD.

Mas quase ninguém segue essas regras, segundo Fernando Cássio, professor da Universidade de São Paulo e pesquisador de políticas públicas na educação.

“Há um grupo de grandes editoras que dominaram o mercado. Elas estão fazendo esse tipo de lobby todo ano por muito, muito tempo”, ele diz. “Se você olhar para as planilhas do PNLD, você vai ver que estamos falando de bilhões de reais. É um negócio muito lucrativo.”

Segundo documentos oficiais obtidos via Lei de Acesso à Informação, o governo brasileiro investigou sete denúncias de lobby das editoras em escolas entre 2019 e 2023. Outras quatro investigações estão em andamento.

The Brazilian Report teve acesso aos relatórios de cada caso. Eles contêm sólidas evidências de atos ilegais, com fotos de presentes que foram entregues a professores, vídeos de jantares pagos por representantes das editoras, cópias de e-mails, mensagens de texto e relatos de testemunhas.

Apesar de tudo isso, os casos foram engavetados por suposta falta de provas.

Em um dos casos, a editora Moderna confirmou ao órgão investigador do Ministério da Educação que levou autores de livros para dar palestras em quatro cidades de três estados (Rio de Janeiro, Paraná e Minas Gerais). A companhia nega que as palestras tiveram relação com o PNLD – apesar de as escolas terem escolhido livros dos autores da editora. Depois da investigação, o governo decidiu enviar apenas um alerta, à escola e à empresa, sem punição.

Em outro caso, representantes das editoras FTD e Moderna supostamente organizaram palestras, distribuíram livros e pendrives de presente, e até deram cupons para cursos grátis a professores da cidade de Sertãozinho, no interior de São Paulo. Um dos palestrantes, autor de livro ofertado no PNLD, explicitamente “pediu para os professores em várias ocasiões para escolherem o seu material”.

No final, os livros de fato foram escolhidos. Mais uma vez, o governo apenas emitiu alertas para os responsáveis e as investigações foram arquivadas.

The Brazilian Report entrevistou professores, diretores e representantes de editoras, que relataram também terem encontrado práticas muito similares em suas rotinas de trabalho. Eles preferiram permanecer em anonimato por medo de represálias, mas providenciaram evidências para comprovar o que disseram. Algumas delas estão nesta reportagem.

O que eles dizem em comum é que o lobby das editoras é tão comum que muitos nem sabiam que a prática era ilegal.

Na prática, o objetivo das grandes editoras é garantir o monopólio no mercado do PNLD. As mesmas empresas dominam o mercado há anos.

Um documento assinado por oito pequenas editoras em 2021 e enviado ao governo diz que “apenas cinco grupos que participam do PNLD fazem 95 porcento de todos os livros escolhidos”. A Controladoria Geral da União abriu uma investigação a partir deste documento para “detectar indícios de irregularidades”, mas não houve resultados até agora.

O que nós encontramos

Um vídeo recebido por The Brazilian Report mostra um funcionário da Saber Educação, do grupo Cogna – o maior grupo educacional do Brasil – com uma caixa de amostra de material didático de uma outra editora. 

“Pessoal, olha o que eu achei em uma escola”, ele diz, mostrando uma caixa vermelha com os dizeres “Escolha o melhor – PNLD 2024”. Dentro dela, ele mostra uma nota fiscal de uma editora concorrente e catálogos que foram enviados para a escola. O de geografia tem um mapa-mundi encartado. “Olha aí que sem-vergonhas. Vamos ficar de olho. Vamos combater, galera.” 

As imagens nesta reportagem foram borradas para proteger a identidade das fontes.

O vídeo foi enviado a um grupo de consultores da Saber. De acordo com pessoas que tiveram contato com ele, a frase “vamos combater” tinha a intenção de que os demais escondessem ou furtassem caixas de amostras de outras escolas, “por se tratar de uma ameaça às adoções das Editoras Ática, Saraiva e Scipione”, as quais fazem parte do grupo da Saber.

Outra foto encaminhada pelo mesmo funcionário mostra o porta-malas de seu carro cheio de livros de outras editoras que ele retirou, sem permissão, de escolas. “Não tá me cabendo no carro, rsrs”, ele escreveu aos colegas. 

“Pelo jeito nesta escola vocês já combateram, kkkk”, respondeu um deles. A pessoa que furtou os livros comentou com um emoji com o dedo indicador em frente à boca, um sinal de que o gesto tinha de ser mantido em segredo. 

Funcionários de escolas compartilham imagens de amostras enviadas por editoras.
Funcionários de escolas compartilham imagens de amostras enviadas por editoras.

Ao ser questionado informalmente pelos colegas de por que estava furtando livros, o funcionário teria dito que um de seus superiores pediu para “estudar a concorrência” e que “ele é do tempo que no PNLD se ganhava carros zero.”

Funcionárias de uma escola veem amostras de material didático enviado por editoras.
Funcionárias de uma escola veem amostras de material didático enviado por editoras.

As informações constam de uma denúncia anônima feita ao compliance da empresa, com fotos e prints, a que The Brazilian Report teve acesso. Conforme a denúncia, a ação ocorreu em visitas a escolas do interior do estado de Minas Gerais em julho de 2023, ou seja, enquanto corria o prazo para que os professores escolhessem os livros do PNLD.

Ainda segundo a denúncia, os consultores da Saber da região também seriam orientados a cadastrar e-mails de professores em um banco de dados para posterior envio de materiais, amostras e convites para treinamentos. Isso teria ocorrido sem a anuência deles, contrariando a Lei Geral de Proteção de Dados brasileira.

“No início das campanhas de PNLD, as editoras tentam angariar o máximo de cadastros possíveis de professores, diretores, coordenadores, todos os envolvidos no processo”, nos disse um consultor. “Pegamos vários cadastros que já tinhamos de PNLDs passados e lançamos no sistema, porém sem o aceite ou consentimento das pessoas envolvidas”.

Ele nos mostrou um folheto entregue a professores que continha um QR code em que a pessoa se registrava para ganhar amostras e convites.

Convite para evento, contendo as logomarcas de três grandes editoras: Ática, Saraiva e Scipione
Convite para evento, contendo as logomarcas de três grandes editoras: Ática, Saraiva e Scipione

No ciclo do PNLD de 2023, as três editoras associadas à Saber (Ática, Scipione e Saraiva) vão receber BRL 287,448,821 do governo federal, segundo consta no Diário Oficial. Os contratos foram assinados em outubro.

Os consultores que conseguem convencer muitas escolas a adotar o material de suas editoras recebem uma comissão pela venda. Um deles, ouvido por The Brazilian Report, disse que irá receber BRL 53 mil por ter tido sucesso em mais de 100 escolas.

“A comissão por venda é o maior atrativo. Se alcançar um marketing share bom, eles pagam geralmente a partir de fevereiro do ano que vem, que é quando o Ministério da Educação paga as editoras”, ele explicou.

Sobre o caso, a Cogna disse que “que tem um canal confidencial de investigação e que já está dando o devido tratamento para esta denúncia recebida. Ao término da apuração, quando cabível, a empresa tomará todas as medidas necessárias”. 

A empresa também disse que “suas políticas e diretrizes internas estão em conformidade com a Resolução 15 do regulamento do PNLD, que não permite oferecimento de qualquer  tipo de benefício, seja ele brinde ou jantar, em troca de alguma vantagem na oferta de seus produtos.” 

E o assédio não se restringe ao corpo docente. Cássio, que também é professor, disse que já viu várias secretarias municipais e estaduais de educação aproveitando presentinhos e jantares chiques de graça. “É até uma maneira de melhorar o salário, que geralmente é bem baixo”.

“Não existe controle, fiscalização ou punição. Nunca ouvi falar de nenhum tipo de reprimenda para quem faz isso”, ele diz.

The Brazilian Report teve acesso a prints de conversas que mostram que representantes da editora Moderna convidaram a equipe da secretaria de educação de um pequeno município de Minas Gerais (cujo nome não será revelado à pedido dos entrevistados) para um jantar em uma pizzaria de alto padrão.

“Bom dia! Estou convidando algumas pessoas da rede Municipal para um encontro na [nome da pizzaria],  veja com as meninas e meninos, se eles podem ir no dia 03.08.2023 as 19:30 hs. Aguardo confirmação”, dizia a mensagem enviada pela funcionária da Moderna.

Professor é convidado para evento de uma editora.
Professor é convidado para evento de uma editora.

Um dos funcionários da secretaria tentou se aconselhar com um gestor da área educacional sobre se poderia atender ao convite. “A gente recebeu um convite da Moderna, do pessoal da Moderna, pra gente ir numa pizzaria e tudo mais. Como que é essas questões aí, é tranquilo?”, ele perguntou, em uma mensagem de áudio.

Sem saber o que fazer, alguns funcionários da prefeitura e professores foram à pizzaria, mas o jantar não ocorreu, segundo eles, porque o líder da equipe, que estava em contato com o representante da Moderna, não confirmou em tempo.

O convite foi feito nos últimos dias para os professores escolherem as suas obras no PNLD. Segundo docentes do município, outras editoras também estavam passando pelas escolas, levando amostras e tentando convencer os professores de que o material delas era melhor – o que também é proibido.

Outro professor, que atua em escolas de pequenos municípios do interior do Rio Grande do Sul, disse a The Brazilian Report que, neste ano, também participou de “palestras” promovidas pela editora Moderna durante a fase de escolha. 

Em resposta, a Moderna disse que “repudia veementemente qualquer tipo de prática irregular a docentes para escolha de livros no PNLD. A editora não oferece benefícios em troca de aprovação ou escolha de seus materiais, nem tem registro de qualquer aproximação com escolas e professores de forma irregular”. 

A editora garante ainda que “toda a orientação comercial e pedagógica da empresa ocorre dentro das regras do programa e tem o objetivo de informar educadores sobre as características das obras e as melhores formas de utilização dos recursos em sala de aula”.

Pelo ciclo do PNLD de 2023, a Moderna vai receber BRL 260.982.190,11 do governo federal. 

Em agosto, o Ministério da Educação publicou um “regulamento de conduta no âmbito do PNLD”. O documento estende aos funcionários públicos a proibição de receber qualquer tipo de agrado das empresas que atuam no programa e enrijece as regras de atuação dos representantes das editoras. 

O descumprimento das normas pode acarretar penalidades que variam de uma advertência escrita à multa de até 5 porcento dos recursos educacionais distribuídos na região da unidade federativa, além da reparação ao dano causado. A multa deverá ser de pelo menos um porcento do valor do contrato.

Representantes de editoras também podem ter a participação no PNLD suspensa por até 10 anos. 

The Brazilian Report procurou o Ministério da Educação para comentar os casos citados, mas não recebeu resposta até a publicação desta reportagem.