Society

Volta da fome recria aluguel de crianças

Sem perspectivas financeiras, pais usam crianças para conseguir esmolas — e as "alugam" para pedir dinheiro para outras famílias

Photo: Julia Laüer/TBR

Com quatro anos de idade, Breno Cauê é marrento. Na gíria, significa a pessoa que é destemida e tem garra para conseguir o que quer. O menino anda bem arrumado, com tênis de grife e penteado de tranças embutidas. É o líder na turma de crianças que, como ele, vive embaixo do Viaduto Santo Amaro, no bairro nobre do Brooklin. 

Ganhou o apelido por ser o campeão de coleta de esmolas do local.

Ele circula entre os carros luxuosos que param em um dos principais cruzamentos do Brooklin, muitos em direção às praias do litoral paulista, e dá cambalhotas, canta e conta piadas. Quando alguém diz que não tem dinheiro para ajudar, ele estende a mãozinha, faz “cara de dó”, como a sua mãe definiu, e rebate: “Tem sim”. 

Sempre acaba tirando algum trocado.

As pessoas se comovem e criam empatia porque identificam Breno como alguém que poderia ser seu próprio filho.

Isso porque, ao contrário das outras crianças que vivem em barracas no viaduto, Breno aparenta estar bem asseado, fala corretamente e foi orientado a parecer uma “criança normal” – ou seja, que vai para a escola e pode ter um futuro pela frente. 

O menino ainda não entende, mas ele é o principal ganha-pão de pelo menos quatro adultos.

Pedir dinheiro, para ele, é a mesma coisa que brincar com seu cachorro, Neymar, ou rabiscar desenhos do personagem Naruto. Não passa de uma grande brincadeira.

[Photo: Julia Laüer/TBR]

Por ser o principal arrimo de um dos locais mais rentáveis para obtenção de esmolas — são vários cruzamentos frequentados majoritariamente por endinheirados —, Breno é “alugado” pela família para outros adultos. São a “família da rua”, pessoas sem parentesco de sangue, mas que ajudam no cuidado da criança. Ele tem uma “avó” e um “pai”, além de outros “tios” ocasionais.

Os adultos levam Breno no colo para sensibilizar os transeuntes. No fim do dia, dividem com a mãe dele o resultado financeiro. A regra é clara: quanto menor e mais cativante for a criança, mais dinheiro se consegue.

O aluguel de crianças foi percebido pela primeira vez por agentes sociais da prefeitura de São Paulo (a mais populosa do país, com 12 milhões de habitantes) durante a década de 1990. Com a pandemia e o empobrecimento das famílias, a situação voltou aos registros da assistência social.

“O que a fome não faz, não é?”, me pergunta Itamar Moreira, o gestor de um dos institutos que prestam serviço para a assistência social da prefeitura de São Paulo. “E onde tem fome, tem trabalho infantil.”

Moreira foi uma criança que teve que trabalhar desde cedo. A partir dos oito anos, carregava compras para senhoras nas feiras livres dos bairros mais nobres de São Paulo. Foi atendido por programas sociais, conseguiu se formar e, desde então, faz pesquisa acadêmica sobre trabalho infantil.

A primeira vez que ele entrou em contato com o aluguel de crianças foi quando estava fazendo a contagem de moradores de um determinado local e os números não batiam. “Tinha muito mais criança nos registros do que a gente estava enxergando. Foi aí que percebemos que cada criança foi contada diversas vezes, pois a cada momento estava com ‘pais’ diferentes”, ele explica.

Trabalhando há 30 anos com a população de rua, Moreira sabe reconhecer quando uma criança está “alugada”. “A gente chega perto e a pessoa sai correndo, sabe que está fazendo algo errado. Muitas vezes vemos as mesmas crianças com adultos diferentes”.

Durante a apuração desta reportagem, em outubro, pegamos o metrô no centro da cidade. Um homem entrou arrastando uma criança pequena. Disse que havia sido assaltado e precisava de dinheiro para comprar comida para a menina — que estava visivelmente entediada. 

Uma senhora cochichou ao meu lado: “Esse cara aparece todo dia na estação, cada vez com uma menina diferente. Deve ter quinze filhas”, brincou.

O número de moradores de rua na capital paulista cresceu 31% apenas nos últimos dois anos, chegando a 32 mil pessoas. Cerca de 10% dessa população é de crianças, segundo a Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Assistência Social. A esmagadora maioria (73%) vive de esmolas e outros trabalhos irregulares. 

É o dobro de 2015, quando o país entrou no que foi, àquele momento, a pior recessão da história (isto é, até a pandemia).

Mas os dados da prefeitura podem estar desatualizados. Um levantamento recente do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas da Universidade Federal de Minas Gerais mostra que os valores podem ser ainda maiores. Após apresentar altas consecutivas e chegar ao ápice em 2020, o número de pessoas em situação de rua voltou a subir em 2022. Eram 42 mil até maio deste ano. 

A diferença é que o estudo da UFMG leva em consideração o Cadastro Único, base de dados do governo federal de beneficiários de programas sociais, enquanto o da prefeitura é baseada em censo feito por assistentes sociais. A pesquisa também revela que mais de 1,5 milhão de paulistanos, ou 12% deles, vivem em situação de extrema pobreza. É um passo imediatamente anterior ao de ir para a rua.

Atualmente, mais da metade da população do país está em insegurança alimentar, e 33 milhões passam fome todos os dias (sente fome por falta de dinheiro para comprar alimentos, faz apenas uma refeição ao dia ou fica sem comer um dia inteiro). 

O número é próximo ao que era registrado no início dos anos 1990, quando várias campanhas mobilizaram a sociedade contra a miséria. Foi somente em 2014 que o Brasil finalmente deixou o Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas – e que agora, menos de 10 anos depois, retornou.

Seu sonho é ser modelo, e acredita que pode ser avistada por um olheiro de talentos se conseguir deixar a vida do viaduto. “Você já viu os cílios do Breno? São grandes iguais aos meus”, ela diz.

Vaidosa, diz que não aceitou o chip anticoncepcional dado pela prefeitura porque era coisa de “drogada e prostituta”. Ela sabe ler e escrever e diz que irá voltar aos estudos no supletivo no ano que vem.

Mãe e filho chegaram a ter um vislumbre de uma vida diferente. A mãe dela, nascida e criada sob o viaduto, começou a construir um barraco na periferia após ser contratada por um salão de beleza no centro. As tranças do menino e os cachos bem-cuidados da garota fazem parte da arte da matriarca.

Foi neste período, pouco antes de Breno nascer, que as coisas pareciam estar se ajeitando, e a família finalmente iria sair da rua. Mas Ingrid não se dava bem com o seu padrasto e a mãe não aceitava o namoro com o pai de Breno – um menino usuário de drogas cujo paradeiro atualmente é desconhecido.

Com a pandemia, o emprego no salão foi para o brejo, a construção do barraco foi interrompida e a mãe de Ingrid se mudou para a casa do namorado, enquanto ela e o bebê se abrigaram com “Solange”, alcunha adotada por uma senhora de mais de 60 anos considerada a “avó da rua” das crianças e jovens que moram no viaduto.

Breno faz parte da terceira geração consecutiva a viver e a trabalhar no mesmo local insalubre. “Queria que me dessem uma oportunidade para sair daqui. Mas é difícil, ninguém tem confiança em quem está na rua”, lamenta Ingrid.

Para eles, falta mais feijão do que sonho.

Ela e a mãe moravam ali em sua infância. Depois, foi criada por uma mãe de criação enquanto a de sangue ficava na rua. Ela conta que era muito brigona, revoltada. Diz que a filha mais velha, Rafaela, a salvou. “Ela é os meus braços e minhas pernas”.

Rafaela tem 12 anos e é a cara da mãe. As duas aprenderam a cantar vendo o programa Ídolos na televisão. A preferência é por hinos de louvor evangélicos, que costumam sensibilizar quem escuta. 

“Ontem a gente cantou um hino em uma padaria, eu olhei e tinham três pessoas chorando. Depois veio uma senhora e falou: ‘A gente se preocupa com coisa pequena e vocês que passam necessidade ainda conseguem adorar a Deus'”.

A maioria das crianças frequenta a escola alguns dias por semana. A periodicidade é comprometida porque os meninos precisam trabalhar pedindo esmolas nos dias de mais movimento. 

A família arma a barraca no viaduto na quinta-feira à noite, aproveitando os viajantes que passam em direção às praias, e só voltam para o barraco de um cômodo que estão construindo no Grajaú (com dinheiro do semáforo) na terça-feira.

Os momentos mais lucrativos são os próximos a datas comemorativas, como o dia das crianças e o Natal – e então as crianças trabalham dobrado e passam às vezes até duas semanas sem ir à escola.

Carla, Rafaela e as crianças também esperam pelo sonho de terem o potencial reconhecido. Um rapaz filmou a menina cantando e postou no Instagram. “Tem mais de 6 mil visualizações,” a mãe diz com orgulho.

A história da família é parecida com a dos vizinhos de viaduto. 

A mãe fez cursos de informática e de cuidadora de idosos. Conseguiu um emprego estável num asilo, onde pôde levar as crianças. Mas foi demitida com o início da pandemia, e todos voltaram para a rua. Uma assistente social disse que Carla contraiu HIV após ser estuprada em uma situação que nunca foi investigada. 

Ela deixou a escola, diz, porque sofreu bullying pelo seu cabelo afro. Agora o mesmo ocorre com a filha Rafaela, que chora quando tem que ir para a aula porque os amigos tiram sarro. “O cabelo dela é bonito, tem que ver quando está molhado, o cacho fica formadinho. Mas quando seca ele fica desse jeito”, a mãe mostra.

Não é uma realidade só delas. 

Um estudo divulgado pela Fundação Getulio Vargas no início do ano apontou que a evasão escolar durante a pandemia regrediu 14 anos. O maior índice foi registrado entre crianças com idade entre 5 e 9 anos, passando de 1,41% para 5,51% entre 2019 e 2020. 

Um aumento de quase 200% de um ano para o outro.

“As crianças mais novas, faixa etária em que tivemos grandes avanços educacionais nos últimos 40 anos, é onde estamos tendo as maiores perdas”, disse o pesquisador Marcelo Neri, da FGV-Social, responsável pelo estudo.

Mesmo as crianças que continuaram frequentando a escola durante a pandemia tiveram quedas significativas no aprendizado, resultado da gestão precária do ensino online e a falta de acesso das famílias pobres. 

Um estudo do Ministério da Educação divulgado em setembro mostra que a proporção de crianças que não sabem ler e escrever mais do que dobrou de 2019 a 2021 – de 15% para 33%. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, do IBGE, a taxa passa dos 40%.

Até quatro em cada dez crianças de 7 anos não foram alfabetizadas.

No fim de 2020, a Unicef calculou que pelo menos 5 milhões de crianças e adolescentes brasileiros em idade escolar estavam sem nenhum acesso a ensino formal. Estudos já mostram que, quanto mais cedo a criança deixa a escola, menores são as chances de ela voltar a estudar algum dia.

Os efeitos vão muito além da educação e serão sentidos por décadas. Segundo o Fundo Monetário Internacional, o déficit educacional causado pela pandemia no Brasil deve empobrecer os rendimentos desta geração em 9,2%, em média, ao longo da vida. 

Também devem crescer os índices de desigualdade, subempregos e informalidade, diminuir a produtividade e a qualificação do mercado de trabalho – fatores que vão comprometer a economia do país no médio e longo prazo.

No mesmo espaço onde pulsam a vida nos escritórios e restaurantes, famílias inteiras se entrincheiram em barracas, cozinham em fogueiras e vestem roupas surradas ou de segunda mão. 

Tayla, de 25 anos, é um desses rostos anônimos que, em função da pobreza, precisam chamar o concreto de casa. 

Sem profissão, mãe de três crianças e grávida do quarto filho, a jovem é dona de uma das barracas montadas na altura da Paulista, em uma pequena galeria a céu aberto localizada entre dois imensos prédios espelhados, em frente à estação Trianon-Masp do metrô.

Para ela, as coisas “pioraram muito nos últimos anos”, tornando ainda mais difícil uma realidade que já é dura em função de não conseguir manter as crianças na escola durante a pandemia. 

Segundo um estudo da organização Todos Pela Educação divulgado no final de dezembro do ano passado, mais de 244.000 crianças entre 6 e 14 anos não estavam na escola no Q2 de 2021 — um aumento de 171% em relação aos números pré-pandemia. 

A situação obviamente afetou mais os mais pobres e mais vulneráveis, já classificados pela ONU como “geração Covid-19” pela relação entre o déficit educacional e a crise sanitária.

“Sou contra colocar [as crianças] para trabalhar, mesmo em função da nossa situação. O lugar delas é na escola. Eu já fui atrás de fazer matrícula para 2023, porque elas ficaram sem escola nesses anos [de pandemia]. Agora estou esperando pra ver se vai dar certo”, conta, enquanto as filhas Emily, de 7 anos, e Esther, de 5, correm pelo cimento. As duas estão entre as milhares de crianças que foram forçadas a ficar longe dos livros. 

Diversos estudos apontam que a situação de vulnerabilidade, especialmente nos anos pós-coronavírus, aumenta as chances de crianças acabarem exercendo algum tipo de atividade em troca de dinheiro.

Para evitar que Emily e Esther passem a integrar a triste estatística do trabalho infantil — e que, como sua terceira filha, sejam levadas a um abrigo —, Tayla defende que elas fiquem na escola. 

Mas conseguir isso é um desafio, principalmente após o aumento da desigualdade causado pela pandemia. 

Uma pesquisa feita pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) projetava que, até o final de 2022, mais de 8,9 milhões de crianças correm o risco de ingressar um grupo que já conta com 160 milhões de crianças e adolescentes nessas condições de trabalho. 

Os dados são do relatório “Crises of Inequality: Shifting Power for a New Eco-Social Contract”, do Instituto de Pesquisa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Social.

“Temos esperança que as coisas melhorem. Mas viver na rua é isso: você nunca sabe o que vai acontecer. Por isso eu tento manter minha família perto de mim, cada um correndo um pelo outro, e quero minhas crianças na escola se for possível”, conta, ao lado do marido Gilson, que trabalha fazendo bicos.

Os três estão desempregados, ainda que Lucas, 27, tire parte do sustento como catador. Já Marcelo chegou a trabalhar por nove meses em uma confeitaria, mas foi demitido durante o auge da pandemia. Mais de 15 milhões de trabalhadores estavam desempregados no início de 2021.

Os três são da mesma família e estão em situação de rua com mais duas crianças, cujos nomes serão preservados a pedido dos adultos entrevistados. Eles temem que a exposição possa atrair o Conselho Tutelar. “O pessoal vem e pega mesmo, viu?”, conta Bruna, que está na rua há quatro anos.

Apesar da situação vulnerável, ela diz que é possível sobreviver. Mostra o celular e diz que tem uma conta no Instagram. “Mas vou te falar, moço … as coisas pioraram demais com a pandemia e o [governo do presidente Jair] Bolsonaro. Ele fala que não tem gente com fome, né? Manda ele vir aqui pra ver se é mentira,” ela diz.

No final de agosto, Bolsonaro disse durante a gravação de um podcast que “não existe fome pra valer no Brasil”. A frase contraria não apenas a percepção de brasileiros que veem uma escalada da pobreza, mas também dados sobre segurança alimentar.

As crianças que moram com a família parecem alheias à realidade dura em que vivem. Uma delas, vestida de princesa, dança e sorri enquanto é fotografada. 

Os responsáveis consideram que elas ainda são novas demais para ir ao semáforo pedir dinheiro ou fazer qualquer outra atividade que renda alguns trocados. Lucas não se orgulha ao falar do assunto, mas explica que a realidade exige tomar algumas decisões ruins. “É duro, mas trabalhar mesmo sendo criança faz parte da vida na rua. Se você andar por aqui ou pelas quebradas da cidade, vai ver vários catando, vendendo.” 

Bruna completa: “Pelo menos eles [meninos] aprendem a ser homens, elas [meninas] aprendem a ser mulher, é o jeito”.

Bruna conta que a realidade em que vivem não facilita o interesse pelo estudo, já que a lógica das pessoas em situação de rua é a da sobrevivência. E se para isso for preciso trabalhar, “é a vida”, diz. 

Apesar de os dados oficiais sobre trabalho infantil estarem defasados desde 2019, especialistas acreditam que o próximo levantamento trará um aumento considerável dos casos, revertendo a tendência da série histórica de 1992 a 2019, quando o número de crianças e adolescentes explorados caiu de 7,8 milhões para 1,8 milhão. 

Isto deve ocorrer por uma série de fatores: o aumento da evasão escolar e do desemprego de adultos, que força crianças a trabalhar para complementar a renda familiar, e os impactos da crise sanitária.

Além disso, um levantamento do Instituto de Estudos Socioeconômicos mostra que o governo de Jair Bolsonaro reduziu em 95% os gastos federais em programas de combate ao trabalho infantil entre 2019 e 2021. 

No primeiro ano, o investimento foi de BRL 6,7 milhões. No último, empenhou BRL 1,88 milhão, mas gastou menos de 18% disso.

A ineficiência do poder público já se reflete nos dados de denúncias, inquéritos, ações civis públicas e termos de ajustamento de conduta do Ministério Público do Trabalho relacionados ao trabalho infantil. A tendência de queda registrada desde 2018 foi interrompida em 2021. Dados de 2022, coletados até agosto, indicam uma contínua piora.

Bolsonaro costuma repetir que trabalho, para uma criança, “é melhor do que roubar” e já pediu para que se “deixe a molecada trabalhar”.

Apenas nos dois primeiros meses da pandemia, em 2020, a Unicef em São Paulo estimou um aumento de 26% de crianças e adolescentes que passaram a ser submetidos a algum tipo de trabalho.

Outro estudo, pela Fundação Abrinq, identificou mais de 1,7 milhão de menores em situação de trabalho infantil no Brasil em 2021. Quase metade dos adolescentes com mais de 14 anos tinham ocupações que envolvem riscos à saúde e ao desenvolvimento, como beneficiamento do fumo, comércio ambulante e coleta de lixo.

Estas, porém, são as funções mais escancaradas do trabalho infantil — as que qualquer pessoa irá reconhecer como uma forma de ocupação. Mas especialistas alertam que as mais comuns são as invisibilizadas — e por isso mais perigosas.

Entram na categoria o trabalho doméstico, principalmente de meninas de regiões pobres que são “adotadas” por famílias ricas em troca de cuidar da limpeza, e os pedidos de esmola na rua.

Os números do primeiro tipo são praticamente desconhecidos, porque não há fiscalização dentro das casas e os chefes das famílias dificilmente irão confessar a situação para o IBGE. O fechamento das creches durante a pandemia também fez muitos pais que trabalham fora de casa depender do cuidado de irmãos mais velhos sobre os mais novos.

Já a mendicância na rua é outro ponto obscuro. Ariel de Castro Alves, advogado especialista em direitos da infância, diz que mesmo os bebês e crianças pequenas que não fazem o gesto de pedir esmola estão em situação de trabalho. “Os pais ou responsáveis aproveitam a imagem da criança para sensibilizar, e isso configura trabalho infantil”, aponta.

É importante destacar que nem todo trabalho doméstico ou de cuidado de crianças configuraria trabalho infantil. As crianças podem e devem ter funções dentro de casa, mas isso se torna um problema quando as tarefas extrapolam o adequado para a idade e prejudicam o aprendizado e o desenvolvimento.

“Essas crianças não são tratadas como crianças”, diz o psicólogo e doutor em psicologia social Paulo Bueno. “Anos atrás, fiz um estágio em uma favela de São Paulo. Nós perguntamos às crianças do que elas gostariam de brincar, e uma menina de oito anos não conseguiu responder. Depois de muito insistir, ela disse que queria brincar de cuidar da irmã. Era uma menina com um bebê no colo que não conseguia se desobrigar desse cuidado. Já não era uma criança”.

O fotógrafo Léo Duarte fala com emoção sobre as cicatrizes que o trabalho enquanto era pequeno deixaram em seu interior. De origem pobre e migrante, ele teve que trabalhar desde cedo cuidando de carros e vendendo balas. 

“Eu olhava os carros na frente de uma pizzaria. Chegava meia noite, 1 hora, eu não aguentava e dormia no chão. Acordava no dia seguinte com moedinhas ou embrulhos de pizza ao meu lado. Já joguei pizza fora achando que o orégano era cinza de cigarro. Eu era pequeno, era inocente. Só queria levar dinheiro pra casa e ver a minha mãe feliz comigo”, ele conta.

“O trânsito, as pessoas, todo o ambiente ao qual você é exposto quando trabalha na rua, tudo isso deixa marcas no seu íntimo que dificilmente serão curadas. Tem coisas que até hoje não consigo contar para ninguém”, diz. 

O estado tem a prerrogativa de notificar os pais, aconselhar e, em casos extremos, encaminhar as crianças para conselhos tutelares e até para adoção em casos de violações reiteradas dos direitos da criança. Mas, em geral, as famílias estão numa situação de vulnerabilidade que as levam a fazer o que acham necessário para sobreviver.

As notificações ocorrem quando há trabalho infantil em empresas, fazendas, alguém para ser responsabilizado. No caso da miséria extrema, em que os pais também são vítimas, é muito difícil haver algum tipo de penalização. “As famílias não podem ser responsabilizadas pelas falhas do poder público,” diz Alves. 

A abordagem social feita por ONGs é “enxugar chão com a torneira aberta”, como definiu o advogado. Na hora que os assistentes sociais vão embora, as práticas continuam acontecendo. Trata-se mais de uma redução de danos do que medidas efetivas para auxiliar os necessitados.

O fotógrafo Léo Duarte, ex-morador de rua, é um exemplo de menino que foi beneficiado pelo trabalho de uma ONG. 

Ele ganhou notoriedade ao aparecer em uma matéria no jornal Folha de S.Paulo sobre o menino de rua que aprendeu a fotografar. Mais tarde, ganhou uma vaga no jornal e trabalhou como freelancer para outros veículos. Integrou gestões do conselho tutelar para ajudar meninos que, como ele, também perderam a infância.

“Muitas pessoas querem culpabilizar a família ou achar que qualquer criança que teve alguma oportunidade, como eu, vai conseguir se livrar do ciclo. Não é bem assim. A ausência do estado não dá possibilidade para os pais e dificulta as coisas para os filhos”, diz.

Como Duarte explica, o ciclo de mazela social custa a ser quebrado. Isso aparece inclusive com pesquisas sobre os descendentes de trabalhadores escravizados, em que muitos deles se tornam também, repetindo os passos dos pais. 

Há um ciclo vicioso, um itinerário de abandono da família pelo estado, que a coloca sem possibilidade de outros trabalhos. “É uma herança escravocrata”, afirma Irina Bacci, da Fundação Panamericana do Desenvolvimento.

Não há uma resposta fácil sobre como resolver o problema. 

A procuradora Ana Maria Villa Real, coordenadora do núcleo de combate ao trabalho infantil do Ministério Público do Trabalho, afirma que a única solução é assegurar, de modo duradouro, o pleno emprego e as condições dignas de trabalho para os adultos.

“Teria que existir um investimento muito forte do Estado”, ela resume. Outro ponto complementar é a implementação de uma política de proteção social ainda mais abrangente que o Bolsa Família, uma política de transferência de renda que o governo do presidente eleito quer retomar a partir do ano que vem.

Para a procuradora, o pagamento de 600 reais mensais a famílias em situação de vulnerabilidade social é importante, mas ainda mais são as contrapartidas necessárias para o recebimento – como manter crianças na escola e com caderneta de vacinação atualizada.

“Estamos falando de famílias muito pobres, que muitas vezes têm dificuldade para manter as crianças fora do trabalho mesmo com a ajuda do governo. Colocar o risco de que elas podem perder o benefício se não cumprirem as condicionalidades é ruim. É preciso ter estabilidade e apostar na conscientização a longo prazo”, ela afirma.

Além disso, a especialista cita que mudanças em leis trabalhistas dos últimos anos que precarizaram contratos de trabalho também são imprescindíveis para obter melhores resultados.

Villa Real conta que os casos em que atuou foram quase sempre frustrantes. “Lembro de uma família que colocava duas crianças para trabalhar em um lava-jato num bairro nobre de Brasília. Demorei mais de um ano até conseguir que elas fossem matriculadas em uma escola com atividades no contraturno. Não adiantaria apenas autuar os pais e mandar os filhos para casa, porque sabemos que muitas vezes isso não resolve a situação”, diz.

“Costumo dizer que não adianta resolver o problema de uma criança ou duas. Tem que olhar para a política de cada localidade. E isso é uma conta que os políticos nunca tiveram muito interesse”.


Esta reportagem foi apoiada pelo Programa Early Childhood Reporting Fellowship: Desigualdade no Brasil e no restante da América do Sul, oferecido pelo Dart Center/Columbia University