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Exclusivo: Vazamento mostra que dados de beneficiários do Auxílio Brasil foram usados para venda de consignado

Representantes bancários tiveram acesso a dados privados de milhões de pessoas — e estão usando as informações em uma estratégia agressiva de venda de crédito consignado

Photo: Evandro Leal/Agência Enquadrar/Folhapress

Para não ser o primeiro presidente a não se reeleger, Jair Bolsonaro está lançando mão de todo o arsenal orçamentário à sua disposição.

Todos os presidentes que se reelegeram no passado o fizeram com uso da máquina pública. Mas nenhum o fez na mesma medida que Bolsonaro. Desde 3 de outubro, quando começou o segundo turno, seu governo anunciou oito novas iniciativas de concessão ou aumento de benefícios sociais — uma média de uma a cada dois dias e meio. 

Desde o primeiro turno, o governo adicionou quase 500 mil famílias a programas de transferência de renda, lançou medidas de renegociação de dívidas e adiantou o pagamento de benefícios. Antes do primeiro turno, já havia aprovado, com o aval do Congresso, a chamada “PEC Kamikaze”, que aumentou em 50% os pagamentos do Auxílio Brasil até o final do ano.

Uma das medidas mais polêmicas foi permitir que os beneficiários do Auxílio Brasil contratassem empréstimos consignados. A política de transferência de renda visa os mais pobres, que podem agora comprometer até 40% de sua renda mensal em empréstimos.

Apesar do alívio financeiro imediato que esses empréstimos podem proporcionar, eles representam um risco grande para uma população já fragilizada financeiramente, segundo especialistas. 

Para começar, os recursos do Auxílio Brasil costumam ser usados para compra de itens básicos de sobrevivência – principalmente alimentos. Além disso, a taxa de juros é bem mais alta do que a praticada atualmente para o empréstimo consignado de outras categorias, como para aposentados ou servidores públicos, de acordo com o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).

The Brazilian Report descobriu que milhares correspondentes bancários (agentes terceirizados contratados por instituições financeiras para prestar e vender serviços a clientes) tiveram acesso a dados privados de beneficiários do Auxílio Brasil. Esses dados estão sendo usados para a prospecção ativa de contratos.

Um desses correspondentes bancários tinha os dados privados de 3,7 milhões de pessoas – ou 20% de todos os beneficiários do Auxílio Brasil – em 21 dos 27 estados brasileiros. Uma fonte estima que pelo menos 50 mil correspondentes tenham tido acesso a bases de dados semelhantes.

As informações incluem o endereço completo das pessoas, números de telefone (fixo e celular), data de nascimento, quanto elas recebem em benefícios por mês, e números do NIS e do CadSUS – respectivamente, os registros dos cidadãos na Caixa Econômica Federal e no Sistema Único de Saúde.

Os dados são tão específicos que, segundo especialistas, provavelmente saíram do próprio governo. Quem possui acesso a eles são o Ministério da Cidadania, a Caixa Econômica Federal, que administram o programa, e o DataPrev, que gerencia o banco de dados sociais do país. Todos negaram qualquer violação de dados ou vazamento malicioso. 

Prefeituras também acessam dados cadastrais dos cidadãos, mas de forma limitada e sem a riqueza de detalhes das tabelas conferidas por nós.

The Brazilian Report teve acesso aos dados, fez cruzamentos com bancos de dados públicos e entrou em contato com pessoas na lista para conferir se as informações são verdadeiras. Todos os beneficiários procurados confirmaram que os dados estavam corretos.

Exclusivo: Vazamento mostra que dados de beneficiários do Auxílio Brasil foram usados para venda de consignado
Os dados foram ocultados para proteger os beneficiários.

Empresas não podem armazenar ou usar dados de cidadãos sem o seu consentimento explícito. O vazamento revela uma violação da Lei Geral de Proteção de Dados.

“Trabalho com isso há 20 anos e nunca vi nada parecido”, diz um correspondente bancário, que falou sob condição de anonimato. “Geralmente temos acesso a dados de pessoas que se pré-cadastram para crédito, mas elas nunca precisam informar o NIS ou o endereço. Claramente, houve um vazamento de dados oficiais”.

Ione Amorim, porta-voz do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), diz que o compartilhamento de dados de beneficiários do Auxílio Brasil é “alarmante” e “deve ser investigado imediatamente pelas autoridades”.

“Se os dados de quase 4 milhões de brasileiros estão com um único correspondente bancário, é legítimo imaginar que as informações estão circulando sem qualquer proteção e podem resultar em fraudes, golpes e inclusive uso eleitoral”, disse ela ao The Brazilian Report

“É muito poderoso você conseguir o contato de milhões de pessoas que precisam desesperadamente de dinheiro”.

O cientista político Alberto Carlos Almeida, que é próximo do PT, publicou no Twitter que ele soube que beneficiários de programas sociais estão recebendo mensagens informando que Lula iria cortar o valor do Auxílio Brasil se eleito.

“Se isso ocorreu com o uso de dados do governo, é um crime eleitoral”, diz Almeida.

O que fortalece a percepção de vazamento de dados do governo é que os arquivos contendo dados pessoais de beneficiários foram compartilhados antes que o programa de crédito consignado fosse anunciado, segundo uma fonte.

A medida entrou em vigor em 11 de outubro, mas os dados aos quais a reportagem teve acesso são datados de 5 de julho. Desde então, correspondentes bancários estão contatando beneficiários para oferecer empréstimos por telefone ou WhatsApp — ou seja, antes de o programa entrar em vigor.

President Jair Bolsonaro presents his flagship cash-transfer program in São Paulo. Auxílio Brasil is the president's biggest bet for re-election.
President Jair Bolsonaro presents his flagship cash-transfer program in São Paulo. Auxílio Brasil is the president's biggest bet for re-election. [Photo: Isac Nóbrega/PR]

Trata-se de uma clara violação da lei que regulamenta o programa, que proíbe “qualquer atividade de marketing ativo, oferta comercial, proposta, publicidade direcionada a beneficiário específico ou qualquer tipo de atividade tendente a convencer o beneficiário a celebrar contratos de empréstimo pessoal com pagamento mediante consignação em benefício”.

Atualmente, 12 bancos estão habilitados para oferecer o crédito consignado. Apenas o aplicativo de empréstimos da Caixa teve mais de 206 milhões de acessos em 10 dias.

Na segunda-feira, o Tribunal de Contas da União deu 24 horas para que a Caixa explique os procedimentos adotados pelo banco para a concessão de empréstimos consignados a beneficiários do Auxílio Brasil. O ministro Aroldo Cedraz também recomendou a suspensão do consignado até que as explicações sejam apresentadas.

Um levantamento do Idec mapeou mais de 2 mil reclamações relacionadas ao crédito oferecido a beneficiários do Auxílio Brasil até 19 de outubro A maioria era relacionada à falta de informações claras das instituições financeiras sobre como solicitar o empréstimo.

“As pessoas estão em uma situação de tanta necessidade que elas não entendem que estão sendo abusadas”, diz Amorim, a porta-voz do Idec.

Segundo o Datafolha, as intenções de voto em Bolsonaro entre beneficiários do Auxílio Brasil aumentaram em 7 pontos percentuais desde a semana passada, enquanto Lula caiu seis pontos nesse mesmo público. E enquanto Bolsonaro perdeu para Lula no primeiro turno em cidades onde mais pessoas dependem de políticas sociais, ele melhorou os seus resultados nestes locais em relação a 2018.

O Ministério da Cidadania afirmou que “não autorizou ou realizou qualquer compartilhamento de dados pessoais com empresas que oferecem crédito consignado ao público beneficiário do Programa Auxílio Brasil”. 

“Os dados de identificação das pessoas e famílias cadastradas são sigilosos e de compartilhamento específico, podendo ser utilizados exclusivamente para a formulação e gestão de políticas públicas e para a realização de estudos e pesquisas”, disse a pasta. O ministério também afirma não ter conhecimento de um possível vazamento de dados.

A Caixa disse que segue “regras de segurança rígidas e não compartilha dados do programa com terceiros”.

Por meio de nota, a Dataprev diz que “não há registro de incidente com vazamento de dados sob a guarda da empresa, que mantém em sigilo e segurança as informações de milhões de cidadãos.”